segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Um reino de piratas portugueses no Oriente: Sundiva (1609-1616)

Foto de Nova Portugalidade.


A ilha de Sandwip (Sundiva em português) situa-se ao largo da costa leste do actual Bangladesh. Acode de quando em vez aos noticiários pelos desastres naturais que repetidamente a assolam - não há década em que ciclones e tornados ali não cobrem mortandades imensas, deixando-a devastada.

Contudo, pela sua localização privilegiada, quem a dominar pode exercer controlo sobre as rotas comerciais provenientes e destinadas às fozes do Bramaputra, do Ganges e do Meghna, rios que desaguam no Golfo de Bengala e são escoadouro das riquezas do norte da Índia, do planalto tibetano, do Nepal e da Birmânia. A sua posse assegurava a hegemonia comercial, pelo que quantos a possuíssem podiam reclamar pagamento de tributo aos ricos mercadores indianos, malaios e chineses envolvidos no comércio de longa distância ligando o Índico ao estreito de Malaca, Golfo do Sião e Mar da China Meridional. A ilha tem sido desde há milénios importante centro de pirataria e banditismo organizado, estando para a região como a Ilha de Tortuga foi durante os séculos XVII e XVIII para as Caraíbas, pelo que, ali, as potências que a dominaram ao longo da história procuraram manter fortes guarnições militares assistidas por meios navais.

Até 1609, Sundiva esteve sob a autoridade de Fateh Khan, representante local do Império Mogol que então dominava praticamente todo o subcontinente indiano. Fateh, afegão de nascimento, era um fervoroso sunita e fez inscrever no seu pavilhão de combate a divisa "Fateh Khan, pela graça de Alá senhor de Sundiva, derramador de sangue cristão e destruidor da nação portuguesa".

Não esperava tal dirigente tão cheio de si que o seu destino se cruzasse com o de um português obstinado e ambicioso, violento a extremos e sem grandes princípios chamado Sebastião Gonçalves Tibau (também grafado Tibao), o típico "português à solta" que então enxameava os mares e portos da Ásia. Supostamente nascido em S. António do Tojal, chegado à Índia como soldado numa das armadas, o jovem de dezanove anos de idade abandonou o seu posto, desertou e de pronto se dedicou ao comércio do sal, rumando a Sundiva para ali se abastecer do produto que então era muito reclamado pelo mercado indiano e do Arracão - região do extremo-ocidental da Birmânia, então um reino independente que há muito mantinha relações com os portugueses.

Familiarizado com as usanças da região, acercou-se do reinete de Bacala (Bakla, no Bangladesh), aliciando-o para um magno projecto de assalto e conquista de Sundiva a troco da partilha do saque. Tibau recrutou na região quatrocentos aventureiros portugueses e com o auxílio da flotilha de Bacala caiu sobre a frota de Fateh Khan, desembarcou na ilha e liquidou a totalidade da guarnição. Porém, na hora da vitória, não cumpriu o acordo com Bacala e reclamou para si a totalidade do espólio.

A notícia da tomada de Sundiva por aventureiros portugueses chegou a Goa. Sebastião dizia querer alargar a sua influência e tomar outras ilhas, mas envolveu-se numa intrincada embrulhada política e militar ao dar apoio a uma das facções em luta pelo trono de Arracão, precisamente aquela que se opunha ao Rei do Arracão que era aliado dos portugueses do Estado da Índia. O pretendente rebelde selou uma aliança com Tibau, oferecendo-lhe a irmã como mulher e estabeleceu-se em Sundiva. Ocorreu então uma misteriosa morte, a somar-se a tantas outras. O pretendente aliado de Tibau morreu envenenado. O facto de Tibau se ter apossado de toda a fortuna do seu aliado e cunhado pesa contra si na legítima pretensão de imaginar quem foi o autor da morte do príncipe arracanês. Seguidamente - ou antes, previsivelmente - Tibau fez as pazes com o Rei de Arracão e selaram uma aliança. O inimigo de véspera era agora um aliado.

Um aventureiro como Tibau não podia ser apoiado directamente por Portugal, mas as autoridades de Goa não o hostilizaram, posto que Tibau se mostrava um encarniçado inimigo dos holandeses e do comércio muçulmano sem cartaz (i.e. aquele sem autorização portuguesa). Entre 1609 e 1614, Sebastião exerceu um poder arbitrário, atraindo aventureiros, constituindo um exército que chegou a reunir mil portugueses, dois mil nativos, parque de artilharia, cavalaria e uma frota de oitenta embarcações. Passou a dedicar-se ao comércio de escravos, à pirataria, à captura e pedido de resgates, a raides e saque de cidades costeiras.

Deslumbrado pela eficácia do seu método, não se deu conta de que tanta habilidade e falta de palavra o estavam a empurrar para o isolamento. Em 1615, temendo que o Grão-Mogol se apossasse da costa do actual Bangladesh, Tibau propôs ao Rei do Arracão que ambas as forças - portuguesas de Sundiva e do Arracão - se apossassem da região da foz do Meghna. Contudo, no início da expedição, enquanto os exércitos de Arracão se internavam em território inimigo, Tibau, ao invés de os auxiliar como prometido, atacou a costa do Arracão, arrasando aldeias e fortes, acumulando grande espólio de templos e capturando centenas de arracaneses para, logo, os vender como escravos. Tamanha traição marcou a sua sorte.

Em 1616, o Rei de Arracão atacou Sundiva e tomou-a após dura refrega. Tibau conseguiu escapar e estabeleceu-se costa de Bengala onde, abandonado por todos. Em 1618, por intervenção do clero de Goa, Filipe II concedeu-lhe o hábito de Cristo, mas a honra não chegou ao seu destinatário. Tibau morrera um ano antes.

MCB

Fontes:
Benjamim Videira Pires, Taprobana e mais além: presenças de Portugal na Ásia. Macau: Instituto Cultural, 1995.
Maria Ana Marques Guedes, Interferência e integração dos portugueses na Birmânia: ca. 1580-1630. [Lisboa]: Fundação Oriente, 1994.
Saturnino Monteiro, Batalhas e combates da Marinha Portuguesa: 1604-1625, vol. V. Lisboa: Sá da Costa, 1994.


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