sexta-feira, 1 de setembro de 2017

28 de Agosto de 1542: cai pela liberdade da Etiópia cristã Dom Cristóvão da Gama

Foto de Nova Portugalidade.


Sir Richard Burton, glória dos orientalistas, chamou a Cristóvão da Gama "the most chivalrous soldier of a chivalrous age". De que são palavras belas, não há dúvida; de que não encerram exagero, será igualmente claro. Filho de Vasco da Gama, Cristóvão chegou à Índia que o seu pai descobrira em 1532, tinha apenas dezasseis anos. Aos 25, já comandava no Índico um dos navios com que Portugal impunha o seu domínio, oferecia repetidas provas de brilho militar, desbaratava as frotas do Turco, forçava-o ao respeito. Era, sem dúvida, jovem para mandar, mas este era um tempo em que a juventude - e a vida - passavam rápido, e em que muito se exigia de homens na flor da idade. Foi ainda moço, pois, que Dom Cristóvão subiu o Mar Vermelho para, em 1541, tentar submeter a grave revés a armada otomana que se encontrava fundeada no Suez. O raide foi um falhanço, mas a frota portuguesa escapou dele incólume. Do Suez seguiram os navios de Portugal para Massawa, porto que a Etiópia, nossa aliada na guerra contra os turcos, nos cedera.

Em Massawa, decidiu-se o seu irmão Estêvão a fornecer ao Imperador da Etiópia um corpo expedicionário que fizesse em terra o que a armada garantia no mar. A comandá-la ficou Cristóvão, cuja capacidade de comando ficara garantida em enfrentamentos anteriores. A força era, considerando o pequeno - mas eficaz - contingente que Portugal tinha a defender o Estado da Índia, muito grande: quatrocentos homens de armas mais cem escravos, para cima de mil arcabuzes, algumas peças de artilharia de grande calibre. Juntou-se à expedição Dom João Bermudes, galego ao serviço de Portugal que era Patriarca da Etiópia e de Alexandria. Dirigiram-se da costa para o interior da Abissínia em tempo de chuva violenta; chegando a Debarwa, onde o vice-rei etíope estava instalado, Gama fez o contingente ocupar-se de tarefas de construção, de adestramento, de refinação da sua capacidade de combate. Dali, ainda, liderou o Gama numerosos ataques a aldeias fiéis a Ahmad al Ghazi, aliado dos turcos e invasor da Etiópia cristã.

Em Fevereiro de 1542, encontrou o contingente português a primeira força inimiga enviada para destruí-lo. À sua frente, liderando grupo quatro vezes mais numeroso que o de Gama, o próprio Al Ghazi. Ghazi, em árabe, significa "o vitorioso", mas vitória foi coisa que o caudilho muçulmano não teve naquele dia. Cristóvão da Gama derrotou-o pesadamente, e perdendo não mais que oito homens. Seguiram-se recontros vários de que Gama foi saindo sempre triunfante e, depois, uma cómica troca de missivas entre os dois chefes. Ghazi, diz-se, enviou a Gama carta exigindo-lhe que os portugueses abandonassem a Etiópia à sua sorte; com a carta, escrita em árabe, seguia o hábito de um frade cristão. Era uma provocação. Gama respondeu-lhe dizendo que ali estava "por ordem do Grande Leão do Mar" (Dom João III) e que se veria "proximamente o valor dos portugueses". Mandou-lhe, também, o seu próprio presente: um espelho e uma pinça, sugerindo que o muçulmano seria uma mulher ou, pelo menos, homem efeminado. Se aquilo fora tentativa de diplomacia, não há dúvida de que não tinha corrido bem.

Seguiram-se, até Agosto de 1542, várias batalhas de que Al Ghazi foi repetidamente perdedor. Mas a campanha portuguesa fora fundada numa mentira, e a missão de Cristóvão da Gama era absurda. Quando finalmente puderam os portugueses aproximar-se do exército do Imperador etíope Gelawdewos, que até ali haviam imaginado forte de dezenas de milhares de homens, descobriram que o Imperador não tinha consigo, afinal, mais de setenta. Os etíopes não contavam, pois, com um aliado; esperavam dos portugueses que travassem eles a guerra. Depois, piores notícias: Al Ghazi, alarmado com as derrotas sofridas às mãos dos portugueses, pedira apoio aos turcos - e estes tinham-lhe enviado três mil mosqueteiros, muitos mais que os portugueses, agora reduzidos a menos de trezentos. A 28 de Agosto de 1542, em Wofla, Ghazi apareceu frente aos portugueses com esses mosqueteiros e vários milhares de outros combatentes. Gama foi derrotado, e logo capturado. Dos 290 portugueses e 23 etíopes, caíram 160 dos primeiros e 8 dos segundos. Os restantes tiveram como recuar.

Gama foi depois humilhado e brutalmente assassinado. Ghazi exigiu-lhe que se convertesse ao Islão, o que o português recusou. Ghazi ordenou, então, que se arrancasse um a um os pêlos da barba do Gama; quando terminaram, e continuando este a negar a apostasia, foi decapitado. A sua cabeça foi atirada para uma fonte juntamente com a de um cão, animal tido como imundo pelo Islão.

Mas os portugueses sobreviventes dariam ainda má surpresa a Al Ghazi. Recuando até ao acampamento do Imperador, em Derasge, os 120 portugueses que restavam juntaram-se ao novo exército cristão que ali se formava. Em Fevereiro de 1543, portugueses e etíopes encontraram o exército de Ghazi em Wayna Daga. Os portugueses ocuparam a frente do exército conjunto, e terá sido um deles, João de Castilho, a disparar o tiro que matou o chefe muçulmano. Morto ele, dizem João Bermudes, Jerónimo Lobo e Gaspar Correia, fugiram amedrontados e em desordem os combatentes muçulmanos. Wayna Daga foi, com a vitória de Adwa sobre a Itália em 1896, o mais ilustre feito de armas da História etíope. A sua memória, assim como a dos portugueses que a fizeram possível e de Cristóvão da Gama, que por ela se sacrificou, não foi nunca esquecida pelos etíopes. No século XX, o Imperador Hailé Selassié fez-lhe tocante referência quando, contra a sua vontade e por pressão dos vizinhos africanos, foi obrigado a cortar relações diplomáticas com Lisboa.

RPB


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