17 julho 2016

O genocídio na Arménia e a falsificação da história

Os regimes totalitários achavam que podiam reescrever a história e o turco pretende apagar 1,5 milhões de arménios mortos em 1915. Consentir na falsificação seria ofender de novo a memória das vítimas

Nesta hora difícil para a Turquia, vítima de mais um hediondo acto terrorista, as orações dos crentes e os pensamentos dos homens de boa vontade não podem deixar de estar com “as vítimas, seus familiares e o estimado povo turco”, como disse o Papa Francisco, na audiência geral do passado dia 29 de Junho. Não basta, contudo, repudiar o acto terrorista que ceifou tantas vidas inocentes no aeroporto de Istambul, é preciso manter viva a lembrança desse crime hediondo, não por ódio ou vingança, mas para que o mundo livre se empenhe mais na luta contra o terrorismo. Caso contrário, teria sido em vão o horrível sacrifício de tantas vidas inocentes.
O mesmo se diga, também, do extermínio, em 1915, de milhão e meio de arménios, o primeiro genocídio do século XX, segundo o Papa Francisco. A este propósito, já na viagem de regresso a Roma, depois da sua recente visita apostólica à Arménia, explicou aos jornalistas: “após ter usado esta palavra publicamente, no ano passado, em São Pedro, teria sido estranho não o fazer agora, na Arménia. Mas, com isso, quis sublinhar uma outra coisa: neste genocídio (arménio), tal como nos outros dois (nazi e soviético), as grandes potências internacionais, olharam para o lado… Foi esta a minha acusação. Nunca usei a palavra ‘genocídio’ com espírito ofensivo; usei-a objectivamente”.
Como era de prever, a reacção do governo turco, pela voz do seu vice-primeiro-ministro, Nurettin Canikli, não se fez esperar, acusando o Santo Padre de querer ressuscitar “a mentalidade das cruzadas”. Apesar das autoridades turcas negarem historicamente o genocídio, a verdade é que um milhão e meio de arménios foram exterminados, em 1915, pelo império otomano.
Muito embora seja costume referir esta catástrofe nacional com uma expressão eufemística, o “Metz Yeghérn”, ou seja, o “Grande Mal”, não foi esta a primeira vez que o Papa Francisco usou a palavra ‘genocídio’, como o próprio referiu, na citada conferência de imprensa aérea. Com efeito, em Abril de 2015, no primeiro centenário do extermínio, numa liturgia em São Pedro, em memória das vítimas, Francisco já o tinha feito, citando uma declaração conjunta de S. João Paulo II e de Karekin II, de 2001. Quer essa celebração, quer também o uso desse termo, levaram então o governo turco a chamar a Ancara o seu embaixador junto da Santa Sé.
É significativo que, durante a sua recente visita à Arménia, o Papa Francisco, tanto na saudação na catedral de Etchmiadzin, como no discurso ao corpo diplomático acreditado na Arménia, não tenha usado o termo ‘genocídio’. Mas, quando se dirigiu ao presidente arménio e às autoridades políticas do país, Francisco utilizou essa palavra. Com efeito, nessa altura disse que “aquela tragédia, aquele genocídio, inaugurou, por desgraça, a triste lista das terríveis catástrofes do século passado, causadas por aberrantes motivos raciais, ideológicos e religiosos, que cegaram as mentes dos verdugos até ao extremo de proporem como objectivo a total aniquilação de alguns povos”. “É muito triste” – acrescentou o Santo Padre – “que, tanto no caso da Arménia como nos outros dois” – referia-se implicitamente à Shoah e ao comunismo – as grandes potências internacionais se tenham desentendido, ou seja, como expressivamente disse Francisco, preferiram “olhar para o lado”.
É muito próprio de um Estado totalitário, ou de uma religião fundamentalista, o branqueamento das suas culpas históricas. É verdade que a qualquer patriota, ou crente, lhe custam algumas páginas menos luminosas da história do seu país, ou da sua religião, mas o passado é o que é e não pode ser manipulado em função do que mais convém.
Há inúmeras páginas gloriosas na História de Portugal, mas também há culpas colectivas como, por exemplo, a que respeita à escravatura, que as autoridades portuguesas toleraram e incentivaram durante séculos, ou ao modo como, em pleno século XX, se procedeu à nada exemplar descolonização, que deu origem a sangrentas guerras fratricidas. Com certeza que há inúmeras explicações possíveis para estes fenómenos, mas nenhum historiador honesto pode negar a sua factualidade.
A história da Igreja também conhece alguns episódios menos edificantes que, mesmo sendo a excepção à regra da caridade e da promoção da justiça social, nenhum católico pode honradamente ignorar. Foi por isso que, no jubileu do ano 2000, São João Paulo II pediu perdão pelas faltas cometidas, em dois mil anos de história, pelos católicos.
Negar o genocídio da Arménia, o holocausto do povo judeu ou as vítimas do estalinismo é negar a realidade histórica. Criminalizar o negacionismo poderia parecer historicamente justificado, mas levaria à instauração do odioso delito de opinião. Também não é razoável cair na mesquinhez de comparar genocídios, porque nenhum povo, ideologia ou religião pode presumir ser a única vítima, nem nenhuma ideologia ou nação está a salvo do juízo da história que, pelos factos e não as intenções, julga o passado.
Os regimes totalitários, como o soviético, achavam que podiam alterar o passado e, por isso, os historiadores comunistas estavam sempre a reescrever a própria história, fazendo até desaparecer das fotografias oficiais os correligionários que, entretanto, iam sendo eliminados … Ao que parece, o governo turco pretende agora também apagar um milhão e meio de arménios mortos, pelo império otomano, em 1915.
O mundo livre, infelizmente, já não pode remediar os terríveis totalitarismos do século passado, nem devolver a vida às vítimas do recente atentado no aeroporto de Istambul, mas seria cúmplice dessas atrocidades se não prestasse às vítimas a única homenagem que as pode resgatar de um ignóbil esquecimento: o testemunho da verdade.
Fonte: Observador

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